A minha avó paterna, a Avó Emília, faria hoje 103 anos. Em sua memória deixo este texto aqui. Um texto que escrevi há 10 anos.
Sentado numa pedra fito uma oliveira e penso há quanto ali estará. Certamente alguns séculos dizem-me. Mas não quero saber os seus anos. A nossa contabilização não se aplica a uma oliveira.
Penso noutra métrica. Quantas gerações terão trabalhado para que aquela oliveira, ano após ano, continue a fornecer o seu fruto? Levanto-me e toco na oliveira. Sempre que visito um monumento histórico gosto de tocar nas suas paredes. Imagino sempre quantas mãos já lá terão tocado, que vidas transportariam essas mãos e que pensamentos preencheriam essas vidas. Repito o gesto na oliveira. É um monumento. Um monumento ao estoicismo.
O que terá movido os homens que ao longo dos tempos têm servido aquela oliveira, na expectativa insegura do seu retorno?
Penso de novo no suor dos que ali terão trabalhado. Penso nas vidas de todos que, como eu, já tocaram naquele ramo grosso e imponente. Penso nas alegrias que esta oliveira lhes terá dado e nas tristezas que certamente também trouxe.
Quem terá sido o criador daquele ícone? Terá ele alguma vez pensado que um dia alguém tocaria num dos ramos, pensando nas vidas passadas sob a sua oliveira?
Arrogantemente penso no poema de Cesário Verde. Aquele em que o poeta revela o seu desejo paradoxal de viver a simplicidade da vida da camponesa e, simultaneamente, ter a consciência dessa simplicidade. Penso nisto arrogantemente, porque admito que as mãos que comigo terão partilhado o toque daquele ramo terão pensado de forma bem mais simples. Quantos quilos dará esta oliveira? Será o azeite de boa qualidade?
Na minha arrogância quase não vejo que foram essas mãos grossas e calejadas que contribuíram para as minhas mãos citadinas e para a minha abstracção improdutiva. Quase não vejo que sob aqueles ramos e sobre aquela terra que pisada solta um ruído incrivelmente sedutor, passou o esforço estóico de muitos dos meus. O estoicismo de alguém que, eventualmente, mesmo sem conseguir filosofar sobre as suas acções, sentia a força de uma necessidade superior de continuar, ano após ano, lavrando, adubando e amando a oliveira. A força da razão mais pura está ali. A necessidade de o homem vencer e de o homem se vencer. Nunca saberia o pai da oliveira que séculos depois alguém pensaria na oliveira como um símbolo do esforço estóico de gerações de homens. O que sei é que aquele pai sabia que tinha que plantar aquela oliveira, cuidá-la e amá-la para que o seu fruto fosse alimentando os sonhos crescentes dos seus filhos e netos por nascer.
Parabéns, avó.